O Tema Repetitivo 1085 do STJ e os Superendividados

Por Francis Ted Fernandes

 

O Superior Tribunal de Justiça decidiu, a partir do Tema Repetitivo 1.085[1], que são legais os descontos das parcelas bancárias superiores a 30% da renda do devedor, feitos em conta corrente, desde que ele o tenha expressamente autorizado, nos seguintes termos:

 

São lícitos os descontos de parcelas de empréstimos bancários comuns em conta corrente, ainda que utilizada para recebimento de salários, desde que previamente autorizados pelo mutuário e enquanto esta autorização perdurar, não sendo aplicável, por analogia, a limitação prevista no § 1º do art. 1º da Lei n. 10.820/2003, que disciplina os empréstimos consignados em folha de pagamento.

 

A decisão se aplica aos casos de descontos de parcelas de empréstimos bancários comuns em conta corrente de correntistas/consumidores saudáveis, os quais se encontram em condições de manter o pagamento das suas contas básicas, como luz, água, alimentação, escola e internet, dentre outras.[2]

 

Situação oposta àquela do tema repetitivo 1.085 do Superior Tribunal de Justiça é a dos correntistas/consumidores superendividados, que buscam no Poder Judiciário a reorganização dos descontos efetuados tanto no contracheque como na conta corrente sob o fundamento do excesso de descontos em detrimento da preservação do mínimo existencial. Neste cenário vem demonstrados descontos acima do limite legal e extrato bancário com saldo negativo, pois todo o valor líquido depositado em sua conta corrente está sendo utilizado para pagamento de empréstimos bancários comuns, juros do cheque especial, seguro, entre outros.[3]

 

Nas hipóteses de superendividamento, verifica-se a diversidade dos fatos daqueles submetidos à apreciação no julgado que ensejou a formação do convencimento na tese repetitiva, uma vez que não se estava diante de consumidor superendividado, sujeito destinatário da norma que introduziu no país a concreção da dignidade da pessoa com a preservação do mínimo existencial.[4]

 

Nesse sentido, os nossos tribunais vêm se posicionando:

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS POR SUPERENDIVIDAMENTO. TUTELA DE URGÊNCIA. DIREITO DO CONSUMIDOR. DESCONTOS DE EMPRÉSTIMOS CONSIGNADOS E EM CONTA CORRENTE. TEMA 1.085. INAPLICABILIDADE. LEI 14.181/2021. ANTECIPAÇÃO DAS SALVAGUARDAS AO MÍNIMO EXISTENCIAL. DEVEDOR-CONSUMIDOR. DIGNIDADE HUMANA. ESTATUTO JURÍDICO DO PATRIMÔNIO MÍNIMO. SUSPENSÃO PARCIAL DA EXIGIBILIDADE DAS DÍVIDAS. DECISÃO REFORMADA. 1. Cuida-se de Agravo de Instrumento interposto contra a r. decisão que indeferiu o pedido de suspensão liminar dos descontos de empréstimos até o julgamento final de processo de repactuação de dívidas por superendividamento. 2. O caso em questão não se amolda à discussão travada no Tema 1.085, pois não discute a legalidade dos descontos em si, nem a aplicação analógica dos limites legais de consignação, e sim a possibilidade de antecipação, em sede de tutela de urgência, das salvaguardas ao mínimo existencial do consumidor-devedor em situação de superendividamento, instituídas pela Lei nº 14.181/2021, dentre as quais a possibilidade de suspensão parcial da exigibilidade do débito oriundo de contratos de empréstimo. 3. Não se trata de mera revisão dos contratos de empréstimo assumidos pela agravante, cujo objeto se circunscreva à discussão de abusividade de cláusulas, onerosidade excessiva ou legalidade dos descontos. Cuida-se, na verdade, de processo de repactuação ampla de dívidas de consumidor em situação de superendividamento, nos termos do artigo 104-A e seguintes do Código de Defesa do Consumidor. 4. Com as alterações empreendidas pela Lei nº 14.181/2021, inaugurou-se nova sistemática para o concurso de credores, o inadimplemento e a mora do devedor-consumidor, tendo por base a vocação protetiva da legislação consumerista e como campo de incidência a situação fática diferenciadora - e extrema - do superendividamento. 5. Trata-se, portanto, de densificação legislativa do princípio constitucional da dignidade humana, sob o viés do estatuto jurídico do mínimo existencial, cuja noção está agregada à verificação de uma esfera patrimonial capaz de atender às necessidades básicas de uma vida digna (FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006). 6. Institui-se o direito do consumidor-devedor à repactuação das dívidas nessa situação extrema, por plano de pagamento aos credores com prazo máximo de 5 (cinco) anos, admitidas dilação dos prazos de pagamento, suspensão da exigibilidade do débito, interrupção dos encargos da mora, redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, suspensão ou extinção de ações judiciais em curso e exclusão do nome do consumidor de bancos de dados e cadastros de inadimplentes. 7. Ainda que não haja previsão de suspensão imediata da exigibilidade das dívidas no processo de superendividamento, é possível a antecipação da tutela garantidora do consumidor nas situações concretas em que a espera pela audiência de conciliação ou resolução de mérito coloquem em risco o bem jurídico tutelado pela norma, qual seja, o mínimo existencial. 8. Lado outro, a suspensão da exigibilidade das cobranças deve ser dar sob o pálio da proporcionalidade, tendo como medida o absolutamente necessário para a garantia do mínimo existencial. E, em consonância com a sistemática da repactuação de dívidas por superendividamento, a tutela de urgência se submete ao ?condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento? (art. 104-A, § 4º, IV, do CDC). 9. No caso concreto, os descontos têm consumido a integralidade da renda mensal da agravante, e restou infrutífera a audiência conciliatória com os credores, razão pela qual foi deflagrado o procedimento judicial de revisão ampla e integração dos contratos e repactuação das dívidas. 10. Portanto, não é apenas plausível a alegação de superendividamento narrada, como presente o risco de prejuízo irreparável ao sustento da agravante e de sua família pelo transcurso do tempo necessário à instrução e julgamento da demanda. 11. Concedida parcialmente a tutela de urgência para limitar pela metade os descontos referentes aos empréstimos consignados e para desconto em conta corrente, até o julgamento final do processo. 12. Agravo de Instrumento conhecido e parcialmente provido. Maioria (TJ-DF 07170696620228070000 1607830, Relator: FÁTIMA RAFAEL, Data de Julgamento: 18/08/2022, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: 06/09/2022).

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO – ação condenatória – Lei nº 14181/2021, que promoveu alteração substancial no CDC, para tratar do superendividamento – situação caracterizada, já que as dívidas de consumo da agravada superam o montante de seus rendimentos – tutela de urgência deferida para limitar os descontos a 30% dos vencimentos líquidos, observada a proporcionalidade dos créditos pelos credores arrolados na ação – decisão recente do STJ em sede de recurso repetitivo acerca da impossibilidade de equiparação dos contratos de empréstimos consignado e de desconto em conta corrente que não altera a possibilidade de concessão da tutela de urgência para limitar os descontos - situações semelhantes, porém o fundamento do pedido é distinto e a tutela de urgência é plenamente cabível, contanto que estejam presentes os pressupostos do art. 300 do CPC que, no caso estão - plano de pagamento que deve ser apresentado pela autora, nada havendo que impeça que a limitação já surta efeitos, até mesmo para garantir a capacidade de pagamento da devedora – precedentes do TJSP – recurso não provido (TJ-SP - AI: 20975231220228260000 SP 2097523-12.2022.8.26.0000, Relator: Achile Alesina, Data de Julgamento: 14/06/2022, 15ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/06/2022).

 

Daí decorre a interpretação sobre a necessidade de limitação dos descontos em conta corrente em 30% dos rendimentos do consumidor quando evidenciada sua situação de superendividamento, inclusive em sede de tutela cautelar, com base no princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º III, CF), com o objetivo de preservar o mínimo existencial (artigo 6º, XII, CDC), ou seja, garantido que o consumidor superendividado possa pagar suas contas básicas para sobreviver dignamente, sem que seja acharcado pelo sistema financeiro e outros credores, concedendo-lhe o mínimo de paz, ao mesmo tempo em que as dívidas são quitadas.

 

E a limitação dos descontos dos rendimentos dos superendividados a um patamar que preserve o mínimo existencial também decorre da norma que se pode extrair do texto do artigo 4º, X do CDC, que objetiva evitar a exclusão social do consumidor, novo princípio orientador da política nacional de relações de consumo, evitando a segregação e discriminação, como bem assevera Cláudia Lima Marques[5]:

 

Evitar a exclusão social: Esta é a finalidade da nova política de combate ao superendividamento. A Atualização do CDC pela Lei 14.181.2021 trouxe como novo princípio orientador da política nacional de relações de consumo a “prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor”. A beleza desta frase é profunda, pois combate a discriminação e à segregação, orienta os esforços dos novos capítulos sobre prevenção e tratamento e sobre conciliação no superendividamento do consumidor ao combate de uma mazela social e econômica, que é a exclusão de milhões de consumidores no Brasil do mercado de consumo. Como ensina Gilles Paisant, a primeira lei francesa, Lei de 29 de julho de 1989, que levava em conta a realidade do superendividamento passivo (aquele que sofre um acidente da vida, desemprego, redução de renda, morte ou doença na família, divórcio etc.), “encontrava sua origem em um projeto de lei relativo à exclusão social emanando do Ministério do Trabalho (PAISANT, Gilles. A reforma do procedimento de tratamento do superendividamento pela Lei 1 de agosto de 2003 sobre a cidade e a renovação urbana, Revista de Direito do Consumidor, vol 56/2005, p. 221-242, Out-Dez/2005; Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor, vol 2, p. 645-670, Abr/2011. A segunda atualização desta lei francesa de 1998 já se intitulava lei de combate à exclusão pelo superendividamento, pelos efeitos deletérios que o superendividamento tem nas pessoas, famílias e sociedades. Note-se que, no Brasil, a menção elaborada pela Comissão de Juristas, no artigo 5º, VI, esclarecia a finalidade de “garantir o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana”, mas foi retirada por negociações. Também no Art. 54-A do Anteprojeto da Comissão de Juristas (e PLS 283,2012) se esclarecia essa finalidade do capítulo como um todo.  

 

Resta claro, a partir dos fundamentos trazidos no texto, que o Tema Repetitivo 1.085 não abordou a temática específica dos superendividados, que podem ter os descontos sobre os seus rendimentos limitados a 30%, com o objetivo de preservar o mínimo existencial, evitando a exclusão social do consumidor, novo princípio norteador da política nacional de consumo, prestigiando-se, assim, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Publicado originalmente no CONJUR:

https://www.conjur.com.br/2023-out-26/ted-fernandes-fraudes-dever-seguranca-bancos/

 

 

[2] CONJUR. Repactuação de dívida do consumidor superendividado e desconto em conta. Káren Rick Danilevicz Bertoncello e Andréia Fernandes de Almeida Rangel. 7 de dezembro de 2022.

https://www.conjur.com.br/2022-dez-07/garantias-consumo-repactuacao-dividas-consumidor-superendividado-descontos-bancarios-conta#author

[3] BERTONCELLO & RANGEL, op. cit.

[4] BERTONCELLO & RANGEL, op. cit.

[5] MARQUES, Cláudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem. 7ª edição ver., atual. e ampliada. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 234/235.

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